“Dress code é uma técnica de controle das pessoas, para regular seus corpos. E ninguém sabe disso melhor do que os fascistas”. Assim a escritora Mel Campbell descreve um termo há muito tempo usado na sociedade — e bastante comum na moda — que aproveita esse controle para disciplinar e segregar.
Para muitos de nós, aderir a um dress code é ou já foi motivo de diversão e sensação de pertencimento, mas quando saímos do raso e da efemeridade desses eventos, entendemos que dress codes são uniformes. E uniformes têm o propósito de padronizar e doutrinar. No livro Discipline and Punish, uma análise da vigilância e da punição que vemos em entidades estatais como prisões e escolas, o filósofo francês Michel Foucault mostra como os uniformes não apenas personificam o poder oficial e submetem os corpos individuais à conformidade disciplinada, mas também criam hierarquias de status entre seus usuários.
E neste momento em que o mundo volta a flertar de peito aberto com o fascismo, é importante entender onde está o papel da moda nessa ciranda. Tenho visto a expressão Fashism para traduzir os códigos de vestimenta aliados a exercícios de poder e disciplina.
É bem documentada a colaboração de Coco Chanel com o nazismo durante a Segunda Guerra Mundial. Ela teve um relacionamento com o oficial Hans Günther von Dincklage durante este período e, segundo o livro Sleeping With The Enemy: Coco Chanel’s Secret War (2011), de Hal Vaughan, ela também estava envolvida em missões nazistas.
A marca sempre tentou esconder ou apagar esse período de sua história, separando a mulher do design. Mas no livro Stitched Up: The Anti-Capitalist Book of Fashion, a autora Tansy Hoskins discorda que isso seja possível: “Está claro que as ideologias de extrema direita de Chanel influenciaram seus designs. Ela defendeu o minimalismo e o austero, representando muito uma Europa branca”, escreve. Recentemente, a Chanel passou a abordar o assunto e assumiu responsabilidade ao reconhecer os erros do passado.
Outra marca que também precisou rever sua história foi a Hugo Boss, cujo fundador foi aliado do partido nazista. Boss foi um membro ativo do Partido Nazista desde 1931 e usava sua empresa de roupas para produzir uniformes para a SS, através do trabalho forçado nos campos de prisioneiros de guerra e territórios ocupados pelos alemães.
Essas são duas das histórias mais conhecidas, mas é fato que toda a alta costura europeia vestiu as esposas da elite fascista da década de 1930. Os historiadores interpretam de duas maneiras essas atividades: como uma colaboração com o regime ou como estratégia de sobrevivência necessária que garantiu a subsistência de cerca de 12 mil trabalhadores e da própria indústria.
A historiadora de moda e vestuário Amy de la Haye conta em um estudo que a cena de couture na época tinha 85 casas, incluindo Balenciaga, Lanvin e Nina Ricci.
Fascinado pelo mundo da moda parisiense, que servia a celebridades e mulheres da alta sociedade, Hitler queria transferir a sede da Alta Costura de Paris para Berlim, como parte do plano nazista de tornar a capital alemã o centro da cultura mundial. Mas foi convencido de que esse segmento da indústria só poderia operar dentro de Paris, onde estavam os especialistas mais habilidosos para fazer roupas e acessórios de Alta Costura. Hitler consentiu, mas a indústria teria que operar dentro do regulamento nazista e decretou que todas as exportações seriam imediatamente encerradas. Ainda assim, apesar da escassez e das restrições impostas aos materiais de luxo (as casas podiam usar apenas 50% do material que usavam antes da guerra), as modas criadas sob o novo regime eram extravagantes.
O fascismo até hoje gravita em torno de códigos de vestimenta que muitas vezes parecem nostálgicos, mas nada mais é do que uma estratégia para reavivar a retórica das ideologias fascistas.
A palavra fascismo tem origem no termo fasces, que simboliza a ideia de poder, autoridade e punição caso você não siga as regras — e aí eu vejo uma conexão sombria com o termo dress code. Um exemplo claro é o sequestro de símbolos nacionais pela extrema direita. Aqui no Brasil, a bandeira nacional e as cores verde e amarelo, que representam todo um país e um povo, viraram atributos que são imediatamente ligados ao bolsonarismo. O verde e amarelo é o dress code — ou o look do dia — da extrema direita brasileira. E essa é mais uma estratégia de manipulação para influenciar a opinião pública e separar os “verdadeiros” patriotas.
Existem outros paralelos claros entre a erosão da democracia que vemos hoje e a tomada de poder pelos nazistas na década de 1930 — Mussolini e Hitler também prometeram tornar seus respectivos países “grandes novamente”.
No livro The Return of Mussolini: The Rise of Modern Day Tyranny, a escritora Elizabeth Gingerich relembra que “Mussolini chegou à cena política no início da década de 1920 e foi apoiado por uma inquietante aliança de negação da ciência, fanatismo, violência, extremismo e nacionalismo. O cuidado com o coletivo foi rapidamente trocado pelo apelo do ‘culto de um’”.
À medida que a violência se torna explícita, permitimos que ideologias socialmente corrosivas permeiem o tecido da vida cotidiana na forma de espetáculo público. Estamos vivendo em uma atmosfera de agressividade emocional irracional e nacional propositadamente promovida.
Repetição e falta de ideias fazem parte dessa técnica de arrebatamento das massas, como escreveu Freud no livro Psicologia das massas e análise do eu, publicado em 1922. O que é peculiar às massas não é tanto uma qualidade nova, mas sim a manifestação de qualidades antigas que podem estar adormecidas na falta de um líder espelho.
As mudanças políticas que temos visto em todo o mundo pedem cuidado e análise para que a gente possa determinar nosso papel e conduta para o futuro. E como forma de expressão e espelho da sociedade, a moda e seus representantes têm como responsabilidade civil não repetir os erros do passado.
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Informações fotos
Foto 1: ilustração de moda de André Delfau para roupa de noite de Paris, em 1943 / Reprodução
Foto 3: O empresário Hugo Boss, à esquerda, usava sua fábrica para produzir uniformes para a SS / Reprodução
Foto 4: Imagem do artista francês Andre Delfau (1914–2000) / Reprodução